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Babau - Etapa Paraíba

Nessa segunda etapa do intercâmbio, o Mamulengo Água de Cacimba encontrou, na divisa da Paraíba com Pernambuco, o Babaulengo (Pedro Luiz e Topete), de Pedras de Fogo, e ambos grupos visitaram o Mestre Bodete. Confira abaixo os registros dessa etapa.

1º dia – 19 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

Pedras de Fogo é uma cidade que se localiza na fronteira dos estados Pernambuco e Paraíba,  fazendo divisa com Itambé-PE. O fluxo entre as duas cidades é intenso e os centros da cidades confluem separados apenas por uma linha riscada no chão de paralelepípedos. Não há separação, há duas cidades que convivem, mas que se diferenciam principalmente pela presença do Estado, como polícia e Hospitais. 

Logo na chegada encontramos Pedro Luiz e Joelson Topete, os integrantes do grupo Babaulengo, nome que faz referência a ideia da junção do Babau (Teatro de Bonecos Popular do Nordeste denominado na Paraíba) com o Mamulengo (denominado em Pernambuco). Iniciamos nosso intercâmbio nesta mesma noite. Os artistas que além do Babau tem relação com outros brinquedos populares, como o cavalo marinho, onde Joelson é Mateus e Pedro Luiz rabequeiro e figureiro, nos prepararam um roteiro de oficinas e visitas a mestres. Roteiro este que passava pelo Babau e pelo Cavalo Marinho, vivenciando a ligação entre os dois brinquedos nesta região. 

Nossa primeira atividade foi a “abertura de mala”, na qual os dois grupos puderam trocar informações e histórias sobre os seus bonecos. A abertura de mala é uma prática antiga entre mestres e brincantes que através dos bonecos podem-se contar as histórias dos escultores, das figuras e das passagens perpetuando assim de forma oral, a memória do brinquedo popular.

Percebemos as semelhanças entre nossos brinquedos pois ambos possuem a figura do Benedito, vaqueiro que é o protagonista do Babau. Interessante que o Mamulengo Água de Cacimba, apesar de ter surgido em Pernambuco, carrega uma mistura de tradições, à medida que reúne a passagens do Benedito com figuras da dança, típicas de Pernambuco. Isso se dá, pelas andanças do mestre do Mamulengo Água de Cacimba, o piauiense Afonso Miguel, que iniciou sua trajetória com Carlos Gomides e junto com Chico Simões no grupo Carroça de mamulengos. Carlos, que foi aprendiz de um mestre Paraibano chamado Antônio do Babau, da cidade de Mari-PB (do qual ganhou seus primeiros bonecos), incentivou o início da trajetória de Afonso, por isso a figura Benedito. Além desta influência, Afonso teve muito convívio e amizade com Saúba, bonequeiro e mamulengueiro de Carpina-PE, por isso as figuras de dança do Mamulengo pernambucano.

Brincadeira Babaulengo. Foto: Chico Ludermir

2º dia – 20 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

As apresentações desta etapa aconteceram na Escola Municipal Jacira de Souza Cesar, na qual Joelson atua como Coordenador pedagógico, portanto é um ambiente bastante familiar para o grupo. O Mamulengo Água de Cacimba, apresentou pela manhã para um grupo de estudantes do fundamental 2, e pela faixa etária do público a brincadeira escolhida foi “Vamos Plantar mulungu”. Houve uma grande interação das adolescentes com os bonecos e com o Mateus que toca cavaco e pandeiro. 

À tarde, o Babaulengo apresentou para um público de crianças, que certamente já tinham experienciado uma brincadeira de Babau. Pedro Luiz e Topete, entram pelo fundo do público tocando Rabeca e Pandeiro, ao som da musicalidade do Cavalo Marinho. As crianças acompanham com o olhar. Depois de tocar uma ou duas tocadas, os artistas se apresentam e contam que vai começar a brincadeira. Pedro entra na tolda e Topete torna-se Mateus. Muito inovador para a Cultura do teatro de Bonecos Popular do Nordeste, a presença do Mateus de Cavalo Marinho como Mateus de Mamulengo, pois geralmente no Mamulengo vemos um Mateus mais contido, que interage apenas quando o boneco pede. Mateus de Cavalo Marinho, tem um protagonismo no brinquedo, uma vez que expressa uma voz diferenciada e uma postura corporal, semelhante a dos trabalhadores do corte da cana, ele revela uma energia única que incorpora dois brinquedos tradicionais. o Mateus de Topete, provoca o boneco Benedito a todo momento o que provoca um jogo divertido entre os dois.

O Benedito do Babaulengo traz situações poéticas do cotidiano, indica que o vaqueiro é um pai dedicado e a brincadeira mostra o cuidado com o filho recém nascido. Destaca-se a passagem na qual Benedito traz um candeeiro, criando uma atmosfera de tempos passados.  É interessante que a dramaturgia não se prende a um enredo único, ele é constituído por passagens que adentram na trama principal. Como por exemplo o Mané da batata que representa um agricultor, figura que é baseada nas vivências de Pedro na roça. Aparecem ainda, animais como o Urubu e Zé do caixão.

Brincadeira Babaulengo. Foto: Chico Ludermir
Brincadeira Mamulengo Água de Cacimba. Foto: Chico Ludermir

3º dia – 21 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

Fomos conhecer o mestre Zé Pequeno, que além de Babauzeiro, é agricultor e em sua casa tem uma venda, que se localiza numa esquina de Itambé. Mestre Zé vive entre um  sítio onde planta e a cidade onde vende a colheita e bebidas. As paredes de sua venda são forradas de cachaças, Pitu e 51 principalmente, mas ele diz que tem cachaça ali da época do engenho. Também há muitas bicicletas do tipo monark, todas antigas e originais. O mestre é um colecionador. Zé Pequeno nomeia sua brincadeira como Mamulengo.

Logo fomos para o fundo da casa onde o mestre abriu sua mala, mostrando os mais de 50 bonecos de sua autoria. Ficamos impressionados com as fisionomias das figuras que remetem a pessoas da cidade e são ligadas aos arquétipos sociais. Como o casal de catimbozeiros (religiosidade muito presente na cidade), vendedor de cabaças, o homem da foice, a noiva, zé do caixão, entre outros. Benedito, que não poderia faltar, percebemos que ele é a figura mais forte na região, além dele também aparecem sua mãe (que não tem nome), seu patrão de nome Venâncio. 

Neste prazeroso dia que compartilhamos com o mestre, cantamos e dançamos toadas de cavalo Marinho ao som da Rabeca de Pedro. Ouvimos passagens de Babau, sendo brincadas por Joelson (Mateus) e mestre Zé, que encenou a voz de diversas figuras de sua brincadeira. Foi muito interessante presenciar a brincadeira sendo feita apenas com as vozes, sem a presença dos bonecos e da tolda. Elevou a ideia de brincar, improvisando naturalmente, no jogo entre as figuras ali evocadas.

Mestre Zé é um idoso muito ativo que mora sozinho, mas tem a presença de um adolescente que ajuda ele com questões do dia a dia e com a venda. Esse menino que o mestre deseja que ele seja uma aprendiz do seu Babau, ficou entusiasmado com a nossa presença e esperamos que ele se inspire para dar continuidade a memória de Mestre Zé Pequeno já que ele não tem herdeiros próximos.

Pedro Luiz conta que nas ações de retomada do Babau naquela região, conheceram o mestre Zé, que na época era conhecido como Zé Cabaré, como um representante da brincadeira de Babau. Quando chegaram ao mestre, ele não tinha mais nenhum boneco, mas tinha todas as memórias. E algumas fotos, as mesmas que ele nos mostrou neste dia. Então junto com Pedro e Joelson, iniciaram a construção de todas aquelas figuras que hoje fazem parte da mala do mestre. Mestre Zé não releva o tipo de madeira que ele usa para construir seus bonecos, preferindo deixar no mistério. Mós concluímos que não é mulungu, percebemos principalmente pelas características do entalhe e pelo peso. Chama a atenção também os figurinos dos bonecos que são muito elaborados e criativos, reaproveitando tecidos e roupas.

Pedro Luiz do grupo Babaulengo. Foto: Chico Ludermir

4º dia – 22 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

Dia de encontrar  Mestre Bodete e fomos para uma das Feiras Livres da cidade de Pedras de Fogo. A feira preserva seus traços a muitas gerações, onde o produtor pode chegar ao consumidor nas cidades. Todo tipo de farinha de mandioca se achava ali, grãos, carnes, frutas, vestuário, e muito mais. O estabelecimento do mestre é na rua da feira do domingo, era onde funcionava um cassino de jogo de cartas. Entramos para conhecer o ambiente de trabalho do mestre, mas logo fomos para a casa de Lula Cigano, um sanfoneiro que mora na rua de trás da feira. 

O quintal  cultural de Lula Cigano, que serviu de cenário para a entrevista com o mestre Bodete, era um espaço muito bem decorado com objetos antigos e disco de vinil, além de fotos do sanfoneiro e sua esposa, que é cantora de forró. O mestre Bodete fala sobre sua trajetória no Babau e relação com outros mestres. 

Foi quando Pedro Luiz e Joelson pegaram os bonecos de Mestre Biu da Macaca (importante mestre babauzeiro de Goiana-PE) para Bodete brincar. Neste momento, o mestre começa a fazer a voz de Benedito, que para ele é gago. Então, entram as outras figuras para representar as passagens, a noiva e o homem da foice e o mestre brinca. Bodete relata que no Babau há muita briga.

No fim da entrevista apreciamos algumas músicas tocadas por Lula, que ressoou em sua sanfona, conhecidos forrós. Ali, naquela casa, pudemos sentir a memória da cidade de Pedra de Fogo, nas figuras de dois antigos mestres de diferente tradições, babauzeiro outro sanfoneiro.

Mestre Bodete. Foto: Chico Ludermir
Bonecos de Luva de Mestre de Biu da Macaca
Bonecos de Luva de Mestre de Biu da Macaca. Foto: Mariana Acioli
Bonecos de Luva de Mestre de Biu da Macaca
Boneca de Mestre de Biu da Macaca. Foto: Mariana Acioli
Bonecos de Luva de Mestre de Biu da Macaca
Boneco de Luva de Mestre de Biu da Macaca. Foto: Mariana Acioli

5º dia – 23 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

Dia de apresentação do Mamulengo Água de Cacimba no Centro social da cidade, turma em Pedro Luiz ministra atividades culturais e artísticas. De manhã apresentamos a brincadeira “Vamos Plantar Mulungu” e “A Flor do Mamulengo” foi apresentado no período da tarde. Foi interessante ver a interação das crianças com os bonecos, um jovem pcd pediu a fala no final da brincadeira e expressou sua satisfação com a atividade e disse “Esse é o verdadeiro Babau de Pedras de fogo” como quem defende a cultura de seu território, para ele os bonecos chamam Babau e naturalmente são originários de Pedras de Fogo. 

Pedro Luiz e Joelson Topete, são brincantes da Cultura Popular desde a adolescência, pois cresceram na região da Zona da Mata Norte Pernambucana e Sul da Paraíba. Nesta terra fronteiriça,onde há a presença de muitos mestres de Cavalo Marinho e Maracatu de baque solto, incluindo toda a diversidade desses brinquedos, a musicalidade, a teatralidade, o brincar. A dupla conta que recebeu o incentivo de uma professora chamada Michele para estudar e seguir na arte. Pois foi no meio dessas brincadeiras que eles ouviram falar do Babau e Mamulengo. Os mais velhos diziam que “brincadeira de Babau que era bom!” como se tivesse ficado no passado. Mas então eles começaram a perguntar a todas as pessoas da região e chegaram ao mestre Bodete. 

Bodete conta que brincava Babau com os bonecos de Biu da Macaca da cidade de Goiana-PE, recebe este nome pois no início de sua apresentação Biu brincava com uma macaca. Então, Pedro Luiz foi com o mestre atrás de Biu da Macaca e quando chegou lá, Biu tinha falecido. Mestre Bodete fez uma oferta pelos bonecos e a família aceitou. Para encurtar a história, os bonecos de Biu estão hoje zelados pelo grupo Babaulengo.

As toldas eram mais fortes no passado, furava o chão de terra para botar as estacas de pau que sustentavam a barraca, pra depois botar o pano. Era uma estrutura similar a de uma casa, diz Pedro pensado nas toldas de hoje, que muitas vezes são feitas de alumínio para favorecer o deslocamento em viagens, mas que não aguentam o movimento da brincadeira e deformam.

Brincadeira Babaulengo. Foto: Chico Ludermir

6º dia – 24 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

Terça feira, fomos novamente visitar o Mestre Zé Pequeno e nos encontrar com sua mala de bonecos. A riqueza das esculturas daquela mala é impressionante. Em cada escultura o mestre revela sua forma de fazer o boneco. Cada figura, conta uma história. Cada história representa o imaginário daquele Mestre. Cada mala é um universo, um povo, muitas vidas. Na mala de Zé vemos muitos bonecos com a manipulação de vara única, chama atenção que apenas Benedito é um boneco de luva. O boneco de Luva tem uma movimentação muito mais detalhada em relação ao boneco de vara única que tem a manipulação limitada. 

A Rua Da Palha de Pedras de Fogo é uma rua muito antiga, que é morada de muitos mestre e mestras da cultura do lugar. Nesta manhã, também fomos conhecer a representante do trançado de palha da cidade, Dona Biu. Essa mulher maravilhosa, que faz todo tipo de chapéus de palha e outros objetos nos recebeu em sua casa e apresentou seu trabalho. Dona Biu conta que já é terceira geração de trabalho na Palha, ofício herdado de sua avó e hoje suas netas também conhecem as artimanhas do trançado. 

Na parte da tarde, fomos visitar o sítio dos sogros de Pedro e acompanhar o ritmo de vida de um Vaqueiro. Paulo, é um homem de meia idade que tem o ofício do Vaqueiro, mas também exerce diversas funções do sítio, na realidade ele mantém o sítio em movimento. Percebemos que muitas das inspirações do babau é o viver no sítio, referenciando os costumes, falas e vivências neste ambiente interiorano. A lida com os bichos,  a diversidade de animais e as formas de existir no mundo, também sempre aparecem no Mamulengo.

Brincadeira Babaulengo. Foto: Chico Ludermir
Brincadeira Babaulengo. Foto: Chico Ludermir

7º dia – 25 de Setembro 2024 – Pedras de Fogo-PB

Neste último dia de intercâmbio, já nos despedindo desta etapa, fomos visitar o Mestre Manoel Cassiano de 96 anos. Este senhor que nos recebeu em sua casa, nos mostra sua pequena caixa de papelão que guarda seus bonecos. De dentro da caixa vão aparecendo as conhecidas figuras do Babau, Benedito é o primeiro, depois o coronel e o boi. Lentamente o mestre pega Benedito em uma mão e o boi com a outra e brinca, cantando uma toada para que a figura tome vida. Ali naquela manhã, as gerações de encontram, as brincadeiras em entrelaços. 

Foi interessante neste intercâmbio, quando vimos Tomás, filho de Pedro, brincando com os bonecos de sua mala. Benedito, Venâncio, o boi, estavam ali também, desta vez feitos de meia e papel, o menino segue os passos do pai. É lindo ver a brincadeira genuína da criança com os bonecos, invocando as figuras tradicionais e seus conflitos. Tomás armou sua tolda entre cadeiras e lá traz se preparava para subir suas figuras. De lá se ouvia a voz do menino, que planejava suas passagens em voz alta. “Benedito vem, ai chega o boi…só falta a coragem pra subir os bonecos agora…” 

Ao juntar as duas imagens geracionais, vimos o menino brincar seus bonecos, vimos o idoso brincar os seus. Benedito, a figura continua ali, com os 90 anos que separa Tomás de Manoel Cassiano. O mestre vira criança, e a criança vira mestre na brincadeira. E nós, brincantes, no meio dessa história.

Saímos de Pedras de Fogo, com muitas reflexões sobre as fronteiras entre territórios e como isso reflete (ou não) nas brincadeiras do Mamulengo e do Babau. Sabendo que, seja qual for o nome dado, nessa região, é Benedito quem está em cena.

Mamulengo Água de Cacimba e Babaulengo. Foto: Chico Ludermir
Card de divulgação da Etapa Paraíba do Projeto Cruzando Fronteiras: Mamulengo, Babau e Calunga