Calunga - Etapa Rio Grande do Norte
Na última etapa do intercâmbio, o Mamulengo Água de Cacimba encontrou a Cia Calungas de Avuá (Catarina Calungueira e Pedro Lucas), de Ipueira, e ambos grupos visitaram o Mestre Marcelino de Zé Limão em Cruzeta. Abaixo, você confere os vídeos, fotos e relatos escritos feitos nessa etapa.
1º dia – 1 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
Ipueira fica localizada no Sertão do Seridó no RN, faz fronteira com o sertão Paraibano. No longo caminho de Olinda a Ipueira, passamos por paisagens de incríveis belezas do sertão adentrando a paraíba. Ao nos aproximar de nosso destino, começamos a avistar grandes cataventos de energia Eólica e “plantações” de energia solar e vemos a devastação ambiental que essas fontes de energia que se prometem “limpas” estão operando nesta região. Vemos longos campos estéreis, cobertos de pedra. No alto da serra, os cataventos ocupam toda a paisagem. A avançada destruição daquele bioma nos trouxe imagens distópicas e cheias de tristeza.
Ao chegar na pequena cidade de Ipueira, nos alojamos na única pousada que fica na rua principal e percebemos que há uma movimentação pois haverá um evento pela Curta Caicó, projeto de cinema que apresenta curtas e promove oficinas de audiovisual no sertão seridoense. Nesse dia seria a exibição dos resultados da oficina, cuja orientação pedagógica foi feita pela nossa intercambista Catarina Calungueira e seria transmitido também o curta de sua autoria que conta a vida do Mestre Calungueiro Marcelino de Zé Limão, o mestre que visitaríamos no intercâmbio, alguns dias depois.
O curta intitulado “Alumbrado” de Catarina Calungueira, mostra um pouco da realidade do mestre Marcelino, seus bonecos e vida na Calunga. Ficamos muito empolgados em conhecer o mestre, mesmo sabendo que ele se encontra doente e por isso, debilitado, não brinca mais os bonecos, mas é uma memória viva da tradição da Calunga no Rio Grande do Norte e na cidade de Cruzetas no coração do Seridó.

2º dia – 2 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
No segundo dia, foram as apresentações do Mamulengo Água de Cacimba e do Calungas de Avuá na Escola Municipal Francisco Quinino de Medeiros, da cidade de Ipueira, escola que recebe crianças do ensino fundamental 1. As brincadeiras aconteceram no período da manhã. A escola estava em festa pois estava se comemorando a Semana da Crianças e por conta do evento as apresentação se encaixaram na programação.
O Mamulengo Água de Cacimba apresentou “A Flor do Mamulengo” e Calunga de Avuá apresentou sua brincadeira “Auto do Boi Aurora”. Na Brincadeira de Catarina, a personagem Catirina (qualquer semelhança não é mera coincidência) encontra diversos animais, como a Onça Pintada, a Rasga Mortalha, o Bode Caramelo, os Seres fantásticos como a Cruviana, a Morte, as Sereias e ainda figuras da Cultura Popular como a Sanfoneira Dona Concertina e as Marujas do Boi de Reis.
Catarina conta que sua personagem Catirina é uma espécie de alter ego dela mesma e que isso frequentemente acontece nas brincadeiras tradicionais, que são autobiográficas e trazem as vivências de quem brinca. Em suas brincadeiras, Catarina evoca animais da caatinga e seres fantásticos baseados nas lendas e causos da região. A Cruviana, é uma figura muito interessante que é uma antiga fala de sua avó que falava para as noites que não ficassem na rua de noite que viria a Cruviana, o frio da noite. Ao poetizar a figura que sua avó trazia, ela imaginou uma senhora que aparece para dar um arrepio em Catirina. São as memórias se perpetuando através das calungas.
As figuras, em sua maioria femininas, são confeccionadas pela própria artista e são todas feitas de pano, salvo uma alma que foi feita pelo Mestre Marcelino e é de Madeira mulungu. Catarina é vanguardista quando falamos em bonecas de pano com manipulação de luva, que dá uma expressividade maior para a figura. Suas bonecas de pano tem muita identidade e trazem seus rostos bordados a mão e ela também utiliza outros materiais como potes de iogurte e papel, para confeccionar seus animais.


3º dia – 3 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
Fomos a Caicó, cidade próxima a Ipueira, onde se localiza a universidade e encontramos artistas bonequeiros de lá. Visitamos o Grupo Verso e Prosa, que é um grupo familiar composto por Lourdinha e Túlio. O casal nos recebeu com um café da manhã, que compartilhamos conversando sobre as calungas, cordeis, brinquedos populares entre outras brincadeiras. Conhecemos a mala de bonecos do grupo e ouvimos relatos das histórias e figuras. Os bonecos do grupo, em sua maioria são feitos de papel. Túlio nos mostra sua produção de brinquedos populares feitos de madeira, tem mané gostoso, Pila Pilão e outros diversos brinquedos articulados e com engrenagem. Na despedida desta talentosa família, ouvimos a declamação do cordel de autoria própria de Lourdinha que fala sobre as mulheres Calungueiras do Seridó. Despertando a memória da grande Calungueira da região, a já falecida, Dadi calungueira, da cidade de Carnaúba dos Dantas RN.
Dentre tantas mulheres que representam a Calunga no Seridó, Dadi Calungueira foi a única que produziu bonecos e bonecas de madeira mulungu, apesar de ter começado com o boneco de papel também. Dadi brincou e escreveu poesias que se encontram registradas em livros, um deles conta a vida e obra na Calunga escrito pela pesquisadora da UFRN Graça Cavalcanti e o livro do compilado poético da mestra “A Flor de Muçambê”. Assim é possível revisitar a memória desta importante mestra Calungueira.
Em seguida encontramos Lydia Brasileira, uma professora do Curso De Pedagogia da UFRN (o qual Catarina Cursou anos atrás e onde teve seu primeiro contato com os bonecos). Lydia, faz um trabalho de registro da fauna e flora da caatinga através dos bonecos feitos de papel machê que representam diversas espécies de animais apresentando também seus nomes originários indígenas. É lindo ver o acervo da professora aposentada, que continua a ensinar o ofício de bonequeira em um museu da cidade de Caicó.

4º dia – 4 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
A abertura de mala da Catarina aconteceu em sua casa de forma bem intimista, conhecemos cada um de seus bonecos e podemos ver a diversidade de seu terno, que possuem bonecos e bonecas de pano, madeira e papel.
Catarina tem em sua mala diversos animais da sua região como a Rasga Mortalha, essa coruja com hábitos noturnos é um ser mitológico no Seridó, seu canto que dizem parecer um pano rasgando anuncia a morte quando surge no telhado de uma casa. Certa noite em Ipueira, vimos uma família de Rasga Mortalha que habitam a torre da igreja matriz, ao observá-las lembrava da boneca de Catarina que é feita a partir de uma sombrinha de pano.
A Cruviana, o frio da noite, que foi um desses dizeres de avó para proteger as crianças dos resfriados, se tornou figura na brincadeira de Catarina. Ela conta que ganhou essa boneca de pano e logo lembrou da fala de sua avó. Tão interessante como ela contempla as formas de viver do povo sertanejo daquele lugar retratando no seu brinquedo tantas passagens dessas vidas ressaltando os animais que ali convivem. O Bode Caramelo, evoca as tradições sertanejas como criação de Bode, esse ser simpático que interage com Catirina recriando as passagens clássicas do Teatro Popular do Nordeste que na maioria das vezes é feita com boi.
As Sereias são seres mitológicos que aparecem em diversas culturas e tradições. Uma usa amarelo e outra azul, o que nos lembra as Yabás, Oxum e Iemanjá. Outra dupla feminina são as marujas do Boi de Reis, que são representadas pelas bonecas de pano que chamamos de Bruxinha e são feitas em diversos Estados do nordeste. O Boi de Reis é um folguedo que conta a história de morte e ressurreição de um Bom, este Auto que serve de inspiração para Catarina que também tem envolvimento com essa manifestação. O Boi Aurora, também evoca este folguedo, pois tudo se desenrola a partir da expectativa em relação ao aparecimento do Boi.
Também é retratada a Onça que ainda existe na Caatinga e que já foi extinta na parte litorânea do estado do RN. Percebemos a inspiração de Lydia Brasileira nos bonecos de Catarina que traz uma pintura detalhada e que se assemelha ao real.


5º dia – 5 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
Na abertura de mala do Mamulengo Água de Cacimba, mostramos nossos dois ternos de bonecos o de “A Flor do Mamulengo” e de “Vamos Plantar Mulungu”. A maioria de nossos bonecos são feitos de madeira mulungu, mas temos uma boneca de pano estilo bruxinha e um boizinho de papel e arame. Conversamos sobre a memória de nossos mestres, aqueles que fizeram os bonecos, aqueles que já brincaram. Os bonecos são seres muito especiais pois tem a capacidade de preservar tantas vidas em sua materialidade.
Quando baixou o sol, saímos para gravar a entrevista de Catarina Calungueira. Foi escolhido um parque na entrada da cidade para gravar com a artista que contou sua história na Calunga e um pouco sobre o seu pensamento em torno do brinquedo. Catarina narra seus primeiros contato com as calungas, que se deu através da faculdade de Pedagogia UFRN campus Caicó na aula da professora Lydia Brasileira e depois com Ricardo Guti, bonequeiro de Brasília que vive no RN. Tempos depois, ao conhecer Dadi Calungueira, desperta em Catarina um enorme vontade de brincar com as calungas.
A divertida fala de Catarina, relata sua experiência da primeira vez que entrou em cena, ela estava colocando o boneco e fazendo sua fala quando bate um vento forte e levou a tolda, revelou-se a calungueira que se envergonhou diante do público. Na entrevista Catarina se referiu sobre suas ideias em torno da tradição e formas de brincar as calungas. Ela mostrou suas bonecas e bonecos, contou suas histórias e trouxe relatos de sua relação com Mestre Marcelino e outros mestres e mestras da Calunga do Rio Grande do Norte.

6º dia – 6 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
Saímos cedinho da manhã para ir a casa de Mestre Marcelino de Zé Limão, que fica na cidade de Cruzetas no Sertão do Seridó. A casa se localiza em uma área rural e ao longo do caminho encontramos diversos animais da caatinga além de bela vegetação dourada e seca. Avistamos os três grandes cajueiros que ficam na beira da rodovia e ao adentrar as estradas de terra vimos uma família de Coruja Buraqueira, saindo de dentro do buraco onde vivem.
Chegando ao encontro com o mestre, todos da equipe vestimos máscaras de proteção, pois Marcelino se encontra com a saúde frágil, mas sua simpatia e entusiasmo em falar dos bonecos continua resistente. Começamos vendo os bonecos de sua mala, enquanto o mestre permanece sentado em sua rede criando uma paisagem bonita com o ambiente. Capitão João Redondo, Baltazar, Benedito, a noiva, Padre, Coronel, bonecos e bonecas vestidos de tecidos coloridos saem da mala e se espalham pelo chão da varanda. Interessante que Marcelino todo o tempo atribui aos bonecos o nome de Calunga e não João Redondo como o registro do patrimônio refere-se, a nomenclatura parece ser algo secundário mas fala muito sobre a identidade de um lugar e seu povo.
Pesquisas fazem um trabalho importante de registro da tradição, porém muitas vezes querem criar “caixinhas” que não são capazes de compreender toda a riqueza e diversidade deste brinquedo ancestral. Inclusive o nome Calunga é que o mais tem ligação com o passado que possivelmente referencia a criação destas tradições. Dentre seus diversos significados, chama atenção o contexto da língua Bantu que é interpretada como “lugar sagrado”. Calunga é também chamado as bonecas de maracatu que carregam o significado de proteção. Neste sentido, quando perguntamos ao mestre o que ele entende como tradição, ele responde simplesmente “É Alegria”.
A aula que Marcelino nos dá ao compartilhar sua visão sobre a brincadeira é emocionante para todos nós, amplia todos os horizontes de significação do que é a tradição e como seguir com ela. A sabedoria do mestre aparece como um elo entre o passado e o futuro do boneco nordestino. Ainda tomamos um café e o mestre nos presenteou com colheres de pau feitas por ele mesmo.
Saindo de lá, fomos em direção a cidade de Acari para conhecer um pouco mais desse profundo Seridó. Chegamos à vila de Acari, com as suas casinhas coloridas e logo avistamos o Açude Gargalheiras. O maior açude já visto por nós, uma beleza impressionante da água, montanha e cânion. Foi lá que passamos a tarde. Voltando pra Ipueira como muitas lembranças e histórias.





7º dia – 7 de Outubro 2024 – Ipueira-RN
A volta pra Olinda, é uma estrada longa. Logo cedo foi fazer a despedida com Catarina e sua família. Ao encontrá-los, João e Samuel, filhos de Catarina, fizeram sua abertura de mala mostrando seus bonecos e bonecas. Os Calungueiros, como os irmãos se identificam, nos apresentaram suas figuras, entre elas Catirina, Boi, Alma, João Redondo. Ali vemos as gerações iniciando suas brincadeiras que é tão genuína para a criança que brinca para reconhecer os processos da vida e fazer sua leitura do mundo.
Ipueira foi nosso último destino deste intercâmbio, mas é só o início de uma jornada de brincadeiras e reflexões. Tantas aprendizagens que tivemos, alcançando gerações de mais velhos, os mestre e mestras que são nosso tesouro de sabedoria, que perpetuam a arte na sua forma mais próxima ao passado. E nós da geração jovem que pretende dar continuidade e carregar a memória de nossos mestre e mestras. E ainda as crianças, que são o futuro destas tradições.
Sim, tradições, no plural. Os muitos sotaques e características de cada região se imprime do boneco que revela a subjetividade de um povo de um lugar. Neste nordeste imenso cada território recria sua realidade através desses seres que brincam e dançam refletindo a sociedade.
É hora de voltar pra casa e finalizar o projeto, brincando em escolas de Olinda. Simbora que ainda tem muita brincadeira!

